Saturday, September 15, 2007

Labores Interditos

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Na Europa do séc. XVI o estatuto da mulher era muito mais restrito que o do homem. Dependente e menos instruída, a mulher apenas conseguia alguma igualdade no campo espiritual, exercendo cargos de chefia numa comunidade de religiosas, mas onde, ainda assim, não se exigia ao homem a mesma virtude, castidade ou virgindade.
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Na pintura como na escrita, as mulheres ou ingressavam em conventos, aí exercendo o seu labor, aprendiam com os pais ou precisavam casar com artistas ou escritores para exercerem a sua arte enquanto “mulheres de” ou “viúvas de”, uma vez que, após a morte dos maridos, adquiriam maior liberdade ficando mais libertas da reprovação social.
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Sujeitas ao poder masculino, ora sob o domínio do pai ora do marido, estas barreiras impediram as mulheres de se tornarem grandes mestres na arte. Se a leitura e a música eram aceitáveis enquanto atributos do feminino, já não era suposto da arte fazerem ofício.
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Em todas as sociedades, o masculino é capaz de governar porque o homem pode pertencer à esfera pública ou privada, enquanto a mulher tem um percurso correlacionado com as áreas de actividade que remetem para a casa, filhos, marido e ela mesma, reduzindo-se os seus interesses e conhecimentos. Ou seja, ilimitada era a visão masculina e restrita a feminina, e, deste modo, assim também os temas tratados nas representações de arte.
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Tendo os homens livre acesso às mais diversas vivências, mais diversificados eram os temas das suas telas ou livros, pertencendo as mulheres a um universo mais restrito, e, porque impedidas de uma cultura mais alargada, mais restrita era a temática das suas obras.
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Sofonisba Anguissola. Auto-retrato, 1556
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Sophonisba Anguissola (1532-1625), natural da Lombardia, Alemanha, é a pintora que maior notoriedade alcançou neste período, conhecendo sucesso internacional.
Todas as suas irmãs (Elena, Lucia, Europa, Anna Maria e Minerva, ) possuíam raro talento artístico, que o pai encorajava. As quatro primeiras foram também pintoras, e Minerva escritora. Sophonisba destaca-se das suas irmãs, sendo o seu pai, Amilcar, quem tratava da venda dos seus trabalhos.
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Sophosniba Anguissola. Retrato de Família. Amilcar, Minerva e Asdrubal, 1558
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Em Roma, para onde se desloca, conhece Miguel Ângelo, que, durante dois anos, orienta algum do seu trabalho, e muito apreciava o seu talento. Posteriormente, foi convidada para a corte espanhola de Filipe II, o dado mais significativo do reconhecimento do seu valor. Tinha, então 27 anos. Na corte, faz retratos de Filipe II, seu patrono, da irmã e mulher deste, Isabela, havendo inclusive ensinado esta a pintar.
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Sophonisba Anguissola. Jogo de Xadrês. Lucia, Minerva e Europa, 1555

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De regresso a Cremona, apaixona-se pelo capitão do navio que a transportava, e casam pouco depois. Tem 47 anos, é o seu segundo marido, e vai encontrar neste um tão grande admirador que, de modo a incentivar o seu trabalho, lhe oferece um estúdio de arte, onde Sophonisba passa a pintar e a ensinar.
O reconhecimento público da qualidade deste labor abre caminho a muitas outras pintoras da Renascença. Nos últimos anos, embora continuasse a fazer retratos, voltou à inicial temática religiosa. A fortuna de seu marido e a pensão que recebia de Filipe II permitiram-lhe pintar liberta de regras e viver confortavelmente.
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Sophonisba Anguissola. Três Crianças, c. 1550
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Van Dyck dela fez vários retratos e visitava-a assiduamente. Morre com 93 anos e, no final da sua vida, terá sofrido de cataratas. Um total de cinquenta trabalhos sobreviveram e podem ser vistos em Bergamo, Budapeste, Madrid, Florença…
No que seria o seu centésimo aniversário, o marido, bem mais jovem, deixa no seu túmulo a inscriçãoA Sophonisba, minha mulher, recordada entre as ilustres mulheres do mundo, proeminente em retratar as imagens do homem […] Orazio Lomellino, lamentando a perda do seu grande amor, em 1632, dedicando este pequeno tributo a uma tão grande mulher
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Sofonisba Anguissola. Auto-retrato, 1610
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Sophonisba foi uma grande mulher, rodeada por dois homens, ao tempo de excepção, que, torneando convenções, acreditaram no seu valor e a incentivaram.
Olhadas como seres excepcionais, raramente tendo em conta a credibilidade dos seus trabalhos, a mulher artista do séc. XVI debatia-se entre a modéstia feminina, que devia fazer parte do decoro, e a necessidade de fama para se afirmar.
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9 comments:

Anonymous said...

La humildad de estas mujeres las hace aún más grandes. La vanidad de los hombres es lo que ha hecho siempre que las mujeres valientes brillen aún más... cuando salen a la luz.

Gracias por esta historia.

teresamaremar said...

:) olá suigeneris

a esta juntam-se outros nomes da época,

Catarina van Hemessen, que, em 1548, faz o primeiro auto-retrato feminino, assinado e no acto de pintar, ou seja, sem ocultar os atributos da sua profissão, pois, mesmo quando as mulheres pintoras se retratavam, a imagem era a destas lendo um livro ou tocando piano, actividades mais convenientes ao recato feminino.

Lavinia Fontana (1552-1614),
cujo marido também pintor, desistiu da sua carreira para investir na da mulher

Judith Leyster (1609-1660)
a primeira mulher a pertencer à Guilda de San Lucas de Haarlem

etc
etc

contudo, e muito curioso tendo em conta a época e as normas de conduta que a sociedade impunha às mulheres, muitas destas mulheres tiveram grandes homens do lado delas, que muito ajudaram nas suas carreiras e contribuíram para que elas se impussessem e saissem do anonimato.


Bom fim de semana

Zénite said...

Teresamaremar,

Belíssimos retratos!
Mais uma lição bela e muito proveitosa.

Não só na pintura e nem só no séc. XVI a mulher é relegada para um distante segundo plano. Analisemos, só a título de exemplo, algumas frases de Victor Hugo (1774-1828) :


O homem é o cérebro; a mulher o coração.

O homem pensa; a mulher sonha.

O homem é o génio, a mulher o anjo.

O homem é forte pela razão; a mulher é invencível pela lágrima.

O homem tem um fanal: a consciência. A mulher tem uma estrela: a esperança. O fanal guia e a esperança salva.



Frases deste tipo não colhem. Cheiram mesmo a esturro da Idade Média, aroma esse que, infelizmente, ainda perdura nos nossos dias.

Deixamo-nos embalar pelas palavras bonitas, porque poéticas, mas não podemos permitir que a hipérbole de VH nos faça resvalar para os mesmos erros de "paralaxe" .

No tempo de VH a mulher ainda era muito escravizada e era nítida a sórdida inferioridade tecida pelo homem em relação à sua companheira. Estava muito próxima, ainda, a Revolução Francesa (1789-1799), que a defendera, reconhecendo-lhe os mesmos direitos (no papel, claro!) que ao homem eram atribuídos.

Escrava do lar, a mulher foi inferiorizada durante quase toda a História da Humanidade, salvo raríssimas e honrosas excepções, diga-se em abono da verdade.

Bom fim-de-semana.

teresamaremar said...

Boa noite Zénite

o mais erudito pensamento que já ouvi é de Schopenhauer,

Uma mulher, queita, calada e vestida de negro até parece inteligente

GS said...

Um espa�o muito interessante!

H� tantas mulheres ainda, em pleno s�culo XXI, a sofrer de estigmas de v�ria ordem, pela sua cultura e intelig�ncia!

Zénite said...

Teresa,

Que poderíamos nós esperar de um mal-humorado como Schopenhaeur?

No dia em que escreveu a frase, por certo uma mulher vestida de vermelho, irrequieta e inteligente, não se calou e ter-lhe-á feito ver que a vida não deve ser vista (somente) pelo prisma do pessimismo, mas também, e essencialmente, pelo seu lado bom. E o filósofo vingou-se, então, da senhora, estendendo a sua vingança às demais. :) :(

Pedrita said...

acho que não mudou muito, vejo muitos homens que não lêem obras de autoras porque consideram menores. poucos valorizam a virgínia woolf como valorizam james joyce e ficam ofendidos se dizemos que ambos foram igualmente incríveis escritores, sempre colocam a virgínia em um patamar menor. aqui no brasil o modernismo foi muito importante para as artistas plásticas como tarsila do amaral e anita malfati. hoje elas são respeitadíssimas, mas na literatura eles ainda têm preconceito. beijos, pedrita

Juliana Salomon said...

estou a passear por aqui,admirando e escutando ecos..
venha visitar-me hora dessas..
www.quasestoria.blogspot.com

Anonymous said...

O auto-retrato, como prática sistematizada, teve início no Renascimento. Até então, as pinturas retratavam aspectos religiosos e o homem não era o foco das preocupações sociais. Entre as precursoras do auto-retrato, destaca-se a italiana Sofonisba Anguissola (1532/1535-1625), que pintou inúmeros quadros retratando-se desde a sua infância até a velhice.
No Autoritratto de 1556, também conhecido como “A Virgem com o Menino”, a pintora assume, mas com prudência, um ofício: o de ser pintora. A seu vestimenta, o seu penteado e a sua pose são os de uma mulher séria e simples, recatada e humanista, que olha timidamente, porém sem medo, a quem lhe observa. A autora mostra que não está concentrada na obra, mas sim em quem a observa, e ao mesmo tempo mostra a sua obra e mostra a si mesmo.
Este quadro, que representa a realidade, quotidiano da pintora, está dividido em duas partes. No da esquerda, encontra-se uma paleta e um quadro iluminados do lado esquerdo e mais escuros no lado direito. Na da direita, os tons escuros de cor de terra, são iluminados pelo colarinho do vestido, pela pele do rosto e pelas mãos (sendo o rosto e as mãos, a chave da sua pintura).
O rosto está iluminado inversamente: a parte escura é o da esquerda; a iluminada a da direita; estabelecendo assim um harmonioso contraste entre os pontos luminosos que se contrapõem na pintura. O rosto sereno transmite a segurança, tranquilidade e confiança, que Sofonisba tem em si mesma e nas suas qualidades morais e atitudes.
As mãos, profundamente expressivas, nos levam no primeiro plano ao fundo do quadro, através da vareta em que se apoia o pincel, transversalmente colocado, que aponta para um extremo a “Virgem” e para o outro, a pintora, como se ela considerasse como sendo uma Virgem oculta. Este pincel é o ponto de equilíbrio, centrado, da composição.
Neste auto-retrato, Sofonisba afirma-se como mulher (através do rosto), mostra a todos a sua identidade, ou seja é ela que está a pintar e não é outra pessoa, outro artista, outro homem…pois, na época em que esta artista viveu, as mulheres eram “abafadas” pelo poder que era dado ao homem e caso uma mulher quisesse se afirmar no mundo, ou teria que se ingressar num convento ou o seu nome teria que vir associado a uma figura masculina, neste caso ao do seu pai, também ele, artista. Mas, perante o seu talento e o seu elevado número de retratos, não se pode ficar indiferente! Assim, aquando esta retratista foi para Roma aprender com Miguel Ângelo, sua fama como artista começou a crescer! Então, o seu rosto simboliza a identidade e a luta dela e de outras mulheres para mudarem a mentalidade social e segundo o que a jornalista Maria João Seixas outrora disse: nós devemos olhar para o espelho logo pela manhã e ver-mos a nós – quem somos e desejamos ser, não quem os outros esperam que sejamos…
Para além do rosto, outro elemento que a caracteriza são as suas mãos. Como anteriormente referi, seu pai era também artista. As mãos de Sofonisba revelam a sua arte, o seu dom…São através das mãos que ela pinta, que representa todo o saber apreendido, que demonstra que é membro de uma elite instruída, que se afirma como pintora num mundo machista.
Neste quadro estão presentes algumas características da estética renascentista, que propôs o retorno de alguns valores clássicos como a representação da realidade, a harmonia, a simplicidade (contenção dos sentimentos), a identidade, entre outros.
Para se entender esta obra, não se pode dissociar das características do estilo em que esta foi produzida. Sendo assim, tratando-se de uma pintura maneirista que tenta afastar-se dos cânones renascentistas, as suas características são: pintura a óleo, permitindo assim a sua melhor preservação e a criação de cores vivas; utilização de objectos religiosos (Virgem e o Menino); corpos com formas esguias e alongadas, como se pode ver na figura da Virgem que possui um pescoço excessivamente longo e o Menino tem uma altura que não corresponde à idade que aparenta ter; o rosto melancólico e misterioso da pintora; a luz sobre objectos e figuras, que produzem sombras irreais e os verdadeiros protagonistas do quadro já não se posicionam no centro da perspectiva, mas sim, neste caso, à direita.