.
Na Europa do séc. XVI o estatuto da mulher era muito mais restrito que o do homem. Dependente e menos instruída, a mulher apenas conseguia alguma igualdade no campo espiritual, exercendo cargos de chefia numa comunidade de religiosas, mas onde, ainda assim, não se exigia ao homem a mesma virtude, castidade ou virgindade.
.
Na pintura como na escrita, as mulheres ou ingressavam em conventos, aí exercendo o seu labor, aprendiam com os pais ou precisavam casar com artistas ou escritores para exercerem a sua arte enquanto “mulheres de” ou “viúvas de”, uma vez que, após a morte dos maridos, adquiriam maior liberdade ficando mais libertas da reprovação social.
Na pintura como na escrita, as mulheres ou ingressavam em conventos, aí exercendo o seu labor, aprendiam com os pais ou precisavam casar com artistas ou escritores para exercerem a sua arte enquanto “mulheres de” ou “viúvas de”, uma vez que, após a morte dos maridos, adquiriam maior liberdade ficando mais libertas da reprovação social.
.
Sujeitas ao poder masculino, ora sob o domínio do pai ora do marido, estas barreiras impediram as mulheres de se tornarem grandes mestres na arte. Se a leitura e a música eram aceitáveis enquanto atributos do feminino, já não era suposto da arte fazerem ofício.
.
Em todas as sociedades, o masculino é capaz de governar porque o homem pode pertencer à esfera pública ou privada, enquanto a mulher tem um percurso correlacionado com as áreas de actividade que remetem para a casa, filhos, marido e ela mesma, reduzindo-se os seus interesses e conhecimentos. Ou seja, ilimitada era a visão masculina e restrita a feminina, e, deste modo, assim também os temas tratados nas representações de arte.
.
Tendo os homens livre acesso às mais diversas vivências, mais diversificados eram os temas das suas telas ou livros, pertencendo as mulheres a um universo mais restrito, e, porque impedidas de uma cultura mais alargada, mais restrita era a temática das suas obras.
..
.
.
Sophonisba Anguissola (1532-1625), natural da Lombardia, Alemanha, é a pintora que maior notoriedade alcançou neste período, conhecendo sucesso internacional.
Todas as suas irmãs (Elena, Lucia, Europa, Anna Maria e Minerva, ) possuíam raro talento artístico, que o pai encorajava. As quatro primeiras foram também pintoras, e Minerva escritora. Sophonisba destaca-se das suas irmãs, sendo o seu pai, Amilcar, quem tratava da venda dos seus trabalhos.
.
.
.
.
Sophosniba Anguissola. Retrato de Família. Amilcar, Minerva e Asdrubal, 1558
..
Em Roma, para onde se desloca, conhece Miguel Ângelo, que, durante dois anos, orienta algum do seu trabalho, e muito apreciava o seu talento. Posteriormente, foi convidada para a corte espanhola de Filipe II, o dado mais significativo do reconhecimento do seu valor. Tinha, então 27 anos. Na corte, faz retratos de Filipe II, seu patrono, da irmã e mulher deste, Isabela, havendo inclusive ensinado esta a pintar.
.
.
.
Sophonisba Anguissola. Jogo de Xadrês. Lucia, Minerva e Europa, 1555
. .
De regresso a Cremona, apaixona-se pelo capitão do navio que a transportava, e casam pouco depois. Tem 47 anos, é o seu segundo marido, e vai encontrar neste um tão grande admirador que, de modo a incentivar o seu trabalho, lhe oferece um estúdio de arte, onde Sophonisba passa a pintar e a ensinar.
O reconhecimento público da qualidade deste labor abre caminho a muitas outras pintoras da Renascença. Nos últimos anos, embora continuasse a fazer retratos, voltou à inicial temática religiosa. A fortuna de seu marido e a pensão que recebia de Filipe II permitiram-lhe pintar liberta de regras e viver confortavelmente.
.
.
.
Van Dyck dela fez vários retratos e visitava-a assiduamente. Morre com 93 anos e, no final da sua vida, terá sofrido de cataratas. Um total de cinquenta trabalhos sobreviveram e podem ser vistos em Bergamo, Budapeste, Madrid, Florença…
No que seria o seu centésimo aniversário, o marido, bem mais jovem, deixa no seu túmulo a inscrição “A Sophonisba, minha mulher, recordada entre as ilustres mulheres do mundo, proeminente em retratar as imagens do homem […] Orazio Lomellino, lamentando a perda do seu grande amor, em 1632, dedicando este pequeno tributo a uma tão grande mulher”
.
.
.
.
Sofonisba Anguissola. Auto-retrato, 1610
..
Sophonisba foi uma grande mulher, rodeada por dois homens, ao tempo de excepção, que, torneando convenções, acreditaram no seu valor e a incentivaram.
Olhadas como seres excepcionais, raramente tendo em conta a credibilidade dos seus trabalhos, a mulher artista do séc. XVI debatia-se entre a modéstia feminina, que devia fazer parte do decoro, e a necessidade de fama para se afirmar.
.
..
.
9 comments:
La humildad de estas mujeres las hace aún más grandes. La vanidad de los hombres es lo que ha hecho siempre que las mujeres valientes brillen aún más... cuando salen a la luz.
Gracias por esta historia.
:) olá suigeneris
a esta juntam-se outros nomes da época,
Catarina van Hemessen, que, em 1548, faz o primeiro auto-retrato feminino, assinado e no acto de pintar, ou seja, sem ocultar os atributos da sua profissão, pois, mesmo quando as mulheres pintoras se retratavam, a imagem era a destas lendo um livro ou tocando piano, actividades mais convenientes ao recato feminino.
Lavinia Fontana (1552-1614),
cujo marido também pintor, desistiu da sua carreira para investir na da mulher
Judith Leyster (1609-1660)
a primeira mulher a pertencer à Guilda de San Lucas de Haarlem
etc
etc
contudo, e muito curioso tendo em conta a época e as normas de conduta que a sociedade impunha às mulheres, muitas destas mulheres tiveram grandes homens do lado delas, que muito ajudaram nas suas carreiras e contribuíram para que elas se impussessem e saissem do anonimato.
Bom fim de semana
Teresamaremar,
Belíssimos retratos!
Mais uma lição bela e muito proveitosa.
Não só na pintura e nem só no séc. XVI a mulher é relegada para um distante segundo plano. Analisemos, só a título de exemplo, algumas frases de Victor Hugo (1774-1828) :
O homem é o cérebro; a mulher o coração.
O homem pensa; a mulher sonha.
O homem é o génio, a mulher o anjo.
O homem é forte pela razão; a mulher é invencível pela lágrima.
O homem tem um fanal: a consciência. A mulher tem uma estrela: a esperança. O fanal guia e a esperança salva.
Frases deste tipo não colhem. Cheiram mesmo a esturro da Idade Média, aroma esse que, infelizmente, ainda perdura nos nossos dias.
Deixamo-nos embalar pelas palavras bonitas, porque poéticas, mas não podemos permitir que a hipérbole de VH nos faça resvalar para os mesmos erros de "paralaxe" .
No tempo de VH a mulher ainda era muito escravizada e era nítida a sórdida inferioridade tecida pelo homem em relação à sua companheira. Estava muito próxima, ainda, a Revolução Francesa (1789-1799), que a defendera, reconhecendo-lhe os mesmos direitos (no papel, claro!) que ao homem eram atribuídos.
Escrava do lar, a mulher foi inferiorizada durante quase toda a História da Humanidade, salvo raríssimas e honrosas excepções, diga-se em abono da verdade.
Bom fim-de-semana.
Boa noite Zénite
o mais erudito pensamento que já ouvi é de Schopenhauer,
Uma mulher, queita, calada e vestida de negro até parece inteligente
Um espa�o muito interessante!
H� tantas mulheres ainda, em pleno s�culo XXI, a sofrer de estigmas de v�ria ordem, pela sua cultura e intelig�ncia!
Teresa,
Que poderíamos nós esperar de um mal-humorado como Schopenhaeur?
No dia em que escreveu a frase, por certo uma mulher vestida de vermelho, irrequieta e inteligente, não se calou e ter-lhe-á feito ver que a vida não deve ser vista (somente) pelo prisma do pessimismo, mas também, e essencialmente, pelo seu lado bom. E o filósofo vingou-se, então, da senhora, estendendo a sua vingança às demais. :) :(
acho que não mudou muito, vejo muitos homens que não lêem obras de autoras porque consideram menores. poucos valorizam a virgínia woolf como valorizam james joyce e ficam ofendidos se dizemos que ambos foram igualmente incríveis escritores, sempre colocam a virgínia em um patamar menor. aqui no brasil o modernismo foi muito importante para as artistas plásticas como tarsila do amaral e anita malfati. hoje elas são respeitadíssimas, mas na literatura eles ainda têm preconceito. beijos, pedrita
estou a passear por aqui,admirando e escutando ecos..
venha visitar-me hora dessas..
www.quasestoria.blogspot.com
O auto-retrato, como prática sistematizada, teve início no Renascimento. Até então, as pinturas retratavam aspectos religiosos e o homem não era o foco das preocupações sociais. Entre as precursoras do auto-retrato, destaca-se a italiana Sofonisba Anguissola (1532/1535-1625), que pintou inúmeros quadros retratando-se desde a sua infância até a velhice.
No Autoritratto de 1556, também conhecido como “A Virgem com o Menino”, a pintora assume, mas com prudência, um ofício: o de ser pintora. A seu vestimenta, o seu penteado e a sua pose são os de uma mulher séria e simples, recatada e humanista, que olha timidamente, porém sem medo, a quem lhe observa. A autora mostra que não está concentrada na obra, mas sim em quem a observa, e ao mesmo tempo mostra a sua obra e mostra a si mesmo.
Este quadro, que representa a realidade, quotidiano da pintora, está dividido em duas partes. No da esquerda, encontra-se uma paleta e um quadro iluminados do lado esquerdo e mais escuros no lado direito. Na da direita, os tons escuros de cor de terra, são iluminados pelo colarinho do vestido, pela pele do rosto e pelas mãos (sendo o rosto e as mãos, a chave da sua pintura).
O rosto está iluminado inversamente: a parte escura é o da esquerda; a iluminada a da direita; estabelecendo assim um harmonioso contraste entre os pontos luminosos que se contrapõem na pintura. O rosto sereno transmite a segurança, tranquilidade e confiança, que Sofonisba tem em si mesma e nas suas qualidades morais e atitudes.
As mãos, profundamente expressivas, nos levam no primeiro plano ao fundo do quadro, através da vareta em que se apoia o pincel, transversalmente colocado, que aponta para um extremo a “Virgem” e para o outro, a pintora, como se ela considerasse como sendo uma Virgem oculta. Este pincel é o ponto de equilíbrio, centrado, da composição.
Neste auto-retrato, Sofonisba afirma-se como mulher (através do rosto), mostra a todos a sua identidade, ou seja é ela que está a pintar e não é outra pessoa, outro artista, outro homem…pois, na época em que esta artista viveu, as mulheres eram “abafadas” pelo poder que era dado ao homem e caso uma mulher quisesse se afirmar no mundo, ou teria que se ingressar num convento ou o seu nome teria que vir associado a uma figura masculina, neste caso ao do seu pai, também ele, artista. Mas, perante o seu talento e o seu elevado número de retratos, não se pode ficar indiferente! Assim, aquando esta retratista foi para Roma aprender com Miguel Ângelo, sua fama como artista começou a crescer! Então, o seu rosto simboliza a identidade e a luta dela e de outras mulheres para mudarem a mentalidade social e segundo o que a jornalista Maria João Seixas outrora disse: nós devemos olhar para o espelho logo pela manhã e ver-mos a nós – quem somos e desejamos ser, não quem os outros esperam que sejamos…
Para além do rosto, outro elemento que a caracteriza são as suas mãos. Como anteriormente referi, seu pai era também artista. As mãos de Sofonisba revelam a sua arte, o seu dom…São através das mãos que ela pinta, que representa todo o saber apreendido, que demonstra que é membro de uma elite instruída, que se afirma como pintora num mundo machista.
Neste quadro estão presentes algumas características da estética renascentista, que propôs o retorno de alguns valores clássicos como a representação da realidade, a harmonia, a simplicidade (contenção dos sentimentos), a identidade, entre outros.
Para se entender esta obra, não se pode dissociar das características do estilo em que esta foi produzida. Sendo assim, tratando-se de uma pintura maneirista que tenta afastar-se dos cânones renascentistas, as suas características são: pintura a óleo, permitindo assim a sua melhor preservação e a criação de cores vivas; utilização de objectos religiosos (Virgem e o Menino); corpos com formas esguias e alongadas, como se pode ver na figura da Virgem que possui um pescoço excessivamente longo e o Menino tem uma altura que não corresponde à idade que aparenta ter; o rosto melancólico e misterioso da pintora; a luz sobre objectos e figuras, que produzem sombras irreais e os verdadeiros protagonistas do quadro já não se posicionam no centro da perspectiva, mas sim, neste caso, à direita.
Post a Comment